“SERAFIM — Caiu-me o mundo em cima, doutor, não sei se já sabe do Ortov, caiu-me mesmo o mundo quando soube que ele se queria matar com veneno dos ratos. Foi buscar um frasco daquilo que tinha guardado na despensa e despejou-o para uma tigela, era para beber como se fosse xarope, imagine, passou dias a calcar as bolinhas do veneno com uma colher de madeira, daquelas do pilão, queria sentir a gengiva a arder e o fluxo do veneno a descer pela garganta como se fosse um bicho ou vinho antigo, já azedo, pelo menos foi o que ele disse. Só que ficou a olhar para aquilo, aquela cor suja, e não conseguiu, não conseguiu, doutor, esse foi o mal, agora não fala de outra coisa, do mundo lá fora, a ruir, do fascismo a chegar não se sabe de onde, da democracia virada do avesso, sei lá mais o quê, ninguém o atura. É isto, doutor, que me preocupa, voltarmos atrás, às prisões, aos campos de concentração, às caves, aos fuzilamentos. Sabe o que lhe digo?, é o extermínio, o extermínio. E desta vez só vão sobrar alguns, e sabe quem, doutor?, os gajos dos bancos e os médicos para os tratarem, nem os enfermeiros escapam, todos para Marte ou para os infernos, lembra-se da última vez que aqui vim?, falei-lhe do Caramulo, de quando lá estive a definhar, com os pulmões a deitar fumo, foi ali que conheci o Ortov. Passava o dia encostado à janela, a contemplar aquela paisagem, a serra toda a descer, os nevoeiros, o sol, a neve, tudo o que há de melhor na natureza, ainda havia pássaros.” [Fragmento da peça Serafim Vai ao Médico]
“Quem é Ortov? Uma personagem, um espantalho, um corpo que anda e gesticula, uma ideia, um texto, um homem, uma mulher, um ser errante, um boneco, um actor, uma poltrona, um espelho, um poeta, um animal, um gravador, um saco de plástico, ou é tudo isso ao mesmo tempo? Ou será a nossa própria vida, a de nós todos, o presente inquietante, o futuro incerto, o bem e o mal?” [Fragmento da Introdução, “Ortov — Vida e Território”]
SOBRE O AUTOR:
Jaime Rocha nasceu em 1949. Estudou na Faculdade de Letras de Lisboa. Viveu em França nos últimos anos da ditadura. Publicou o primeiro livro, Melânquico (poesia), em 1970. Tem editadas várias obras nos domínios da poesia, da ficção e do teatro. Os seus livros de poesia, publicados nesta editora, Os Que Vão Morrer, 2000, Zona de Caça, 2002, Lacrimatória, 2005, e Necrophilia, 2010, constituem uma tetralogia a que o autor chamou Tetralogia da Assombração. Necrophilia foi galardoado com o Prémio de Poesia do PEN Clube 2011. Anteriormente, em 2003, havia publicado Do Extermínio, livro que denominou Livro da Anunciação. Em 2017 publica Preparação para a Noite. Na prosa, destaca-se, além de A Loucura Branca e Os Dias de Um Excursionista, o romance Anotação do Mal, vencedor do Prémio de Ficção do PEN Clube 2008, A Rapariga sem Carne e Escola de Náufragos. A Relógio D’Água tem vindo, também, a publicar alguns dos seus textos dramáticos: O Jogo da Salamandra, 2001, e Azzedine e Outras Peças, 2009.