“Talvez não haja dias da nossa infância que tenhamos vivido tão plenamente como aqueles que cremos ter deixado sem os viver, aqueles que passámos com um livro preferido. Tudo o que os preenchia para os outros, era por nós afastado como um vulgar obstáculo perante um prazer divino: o jogo para o qual um amigo vinha buscar-nos na passagem mais interessante, a abelha ou o raio de sol perturbadores que nos forçavam a levantar os olhos da página ou a mudar de lugar, as provisões da merenda que nos tinham obrigado a trazer e que deixávamos ao nosso lado no banco, sem lhes tocar, enquanto, por cima da nossa cabeça, o sol ia perdendo força no céu azul, o jantar que nos obrigara a voltar para casa e durante o qual só pensávamos em subir de novo as escadas para acabarmos, logo a seguir, o capítulo interrompido.”
Ler era, para Proust, mais do que a procura de conhecimento, uma atividade espiritual, um meio de se transformar e transcender. Ao lermos os grandes romances, afirma, entramos em contacto com ideias fantásticas e as mentes mais inspiradoras do mundo.
SOBRE O AUTOR:
Marcel Proust nasceu em Auteuil, a 10 de julho de 1871, para onde os seus pais se haviam deslocado devido à Comuna de Paris — a residência habitual dos Proust era o n.º 9 do Boulevard Malesherbes. O pai, Adrien, é professor de Medicina, a mãe, Jeanne Weil, herdeira de importante fortuna.Proust estuda no Liceu Condorcet, lê os contemporâneos e tem uma paixão platónica por uma famosa cortesã. Cumpre o serviço militar e conhece Maupassant, Wilde e Barrès quando frequentava já o curso de Direito e Ciências Políticas. Aos 21 anos, participa na formação da revista Le Banquet, onde publica os primeiros textos literários.Até aos 37 anos, teve uma intensa vida intelectual e mundana. Escreveu Les Plaisirs et Les Jours, alguns pastiches de autores que admirava, crónicas sociais e críticas, e deixou inacabado o romance Jean Santeuil, em cujo final surge já a preocupação com o tempo.
O desaparecimento da mãe em 1905 não fez Proust sair de uma certa indefinição literária, embora o tenha começado a afastar do mundo — a partir de setembro desse ano entra numa clínica, e depois num hotel de Versalhes, de onde sai para se enclausurar num quarto do Boulevard Haussmann, entre fumigações e narcóticos. Em 1908, começa a escrever Contre Sainte-Beuve, uma obra hesitando entre o ensaio e o romance, amálgama de fragmentos de estética literária, cenas, diálogos e personagens, alguns deles retomados mais tarde. No entanto, alguma coisa do que faria a originalidade de Em Busca do Tempo Perdido surge já na importância atribuída à recordação involuntária suscitada pelo pão mergulhado no chá, ou por um pátio irregular, arrancando ao esquecimento “essa pura substância de nós que é uma impressão passada”. Mas entre a recusa do manuscrito de Contre Sainte-Beuve, em meados de 1909, e a publicação de Do Lado de Swann, quatro anos mais tarde, algo de fundamental se passa. Em finais de 1909, Proust retira-se da vida social, a sua caligrafia transforma-se, enovelando-se em correções sucessivas, os cadernos acumulam-se, e ele próprio sente que está a criar um grande romance que vai disputar à morte, que chegaria em novembro de 1922.