«Os séculos passaram sobre a vila como as aves, deixando as suas fezes. Os séculos passaram, desfazendo sombras de forcas, e higienizando, e espalhando o seu fumo fabril sobre a paisagem. Houve, por duas gerações, certo fulgor, aquilo a que chamavam o progresso, isto é, O caminho para a frente, como se existisse essa direcção. Depois a fábrica fechou, o rio secou e o pássaro do século acabou por entregar em casa das pessoas uma mensalidade que não era ganho nem rendimento. Era um fantasma que tinha a gratidão de toda a gente. Pois os ares do tempo não deixavam morrer de fome, ainda que alguns morressem, nas montanhas, de frio.
Não eram todos velhos, mas havia de comum entre eles a indiferença pelos prazeres tribais, pelas bebidas, pelos jogos estridentes. Alguns pintaram o arco-íris na capela porque supunham que os entusiasmaria sexualizarem um lugar assim, dançar com grandes efusões obscenas. Mas era pedir muito aos sentimentos. Já não havia fé para blasfémias. A capela mantinha o seu altar que serviu de balcão às cervejas cujo sabor antigo desgostava. Rapidamente se cansaram dela.» [De «Certas Raízes»]
SOBRE A AUTORA:
Hélia Correia nasceu em Lisboa. Licenciada em Filologia Românica, foi professora do ensino secundário. Poetisa e dramaturga, foi enquanto ficcionista que Hélia Correia se revelou como um dos nomes mais importantes e originais surgidos durante a década de oitenta, ao publicar, em 1981, O Separar das Águas. Seguiram-se romances como Montedemo, Casa Eterna (Prémio Máxima de Literatura, 2000), Insânia, Bastardia (Prémio Máxima de Literatura, 2006), Adoecer (Prémio Fundação Inês de Castro, 2010) e Um Bailarino na Batalha (Grande Prémio de Romance e Novela APE/(DGLAB, 2018).
Na poesia, tem uma vasta colaboração em antologias e jornais e publicou obras como A Pequena Morte/Esse Eterno Canto (em díptico com Jaime Rocha), Apodera-te de Mim, A Terceira Miséria (Prémio de Poesia PEN Clube, 2012, e Prémio Correntes d’Escritas, 2013) e Acidentes (Prémio de Poesia PEN Clube, 2021).
A sua escrita para teatro tem privilegiado os clássicos gregos. Destaca-se Perdição, Exercício sobre Antígona, O Rancor, Exercício sobre Helena e Desmesura, Exercício com Medeia.
Para a infância, salienta-se os livros da colecção Mopsos, o Pequeno Grego, Ouro de Delfos e A Coroa de Olímpia. Destaque também para as suas versões das obras de Shakespeare, Sonho de Uma Noite de Verão — Versão Infantil e A Ilha Encantada — Versão Infantil de A Tempestade, e ainda para A Chegada de Twainy (2011) e A Luz de Newton (2015).
Entre os vários prémios que recebeu, destaca-se o Prémio Camões (2015).